Reitor Emmanuel Tourinho concede entrevista exclusiva sobre os impactos dos cortes de gastos para a UFPA e para a Educação Pública Brasileira

Reitor Emmanuel Tourinho concede entrevista exclusiva sobre os impactos dos cortes de gastos para a UFPA e para a Educação Pública Brasileira

No último dia 17 de janeiro de 2024, Emmanuel Tourinho, reitor da UFPA, recebeu a ASCOM da ADUFPA para uma entrevista exclusiva sobre os impactos dos cortes orçamentários para a instituição e para a Educação Pública brasileira, confira.

ASCOM ADUFPA

Em dezembro de 2023 a UFPA publicou a nota pública da Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (Andifes) na qual expressou sua indignação com o orçamento das universidades federais para 2024, aprovado pelo Congresso Nacional no dia 22/12. Qual aspecto você gostaria de evidenciar sobre os desafios e obstáculos que as instituições enfrentarão neste ano que se inicia?

 

Emmanuel Tourinho

Belém, Pará, Brasil. Emmanoel Tourinho, reitor da UFPA, em seu gabinete. Foto: Octavio Cardoso.

Bom, primeiro é um prazer conversar com a ADUFPA, e dar informações que chegarão à categoria docente de modo detalhado, considerando os vários aspectos da vida da universidade. Do ponto de vista orçamentário e financeiro, nós assumimos a gestão em 2016. A nossa referência é o orçamento de 2015, que foi o último orçamento no governo Dilma (PT) que acompanhava o processo de expansão das universidades com o Reuni. A partir de 2016, nós já estávamos com um orçamento de custeio que era, em valores nominais e reais, menor. Já tínhamos perdido 25% do valor em relação ao ano de 2015. De lá para cá, enfrentamos cortes sucessivos. Aqui e ali havia alguma recomposição, mas nunca voltando para o patamar de 2015. Um fato que não pode ser esquecido, é que as universidades continuaram crescendo. Nós não paramos de crescer em 2015, quando tivemos o melhor orçamento dos últimos 15 anos, nós continuamos crescendo depois disso enquanto os orçamentos foram diminuindo. E eles diminuíram em valores nominais em alguns momentos, e em valores reais em outro. Durante esse período, tivemos inflação todos os anos e todos os nossos contratos de manutenção da universidade são corrigidos anualmente pela inflação do ano anterior. Então, isso foi criando uma pressão no sistema de gestão que foi tornando muito difícil garantir que a universidade pudesse continuar realizando todo o seu potencial.

 

Nós estabelecemos desde o começo da gestão duas direções. Uma primeira foi de que nós não pretendíamos só sobreviver à crise, nós não queríamos trabalhar só para garantir que a universidade sobrevivesse com o que ela havia acumulado de conquistas, nós buscamos sempre trabalhar para que ela continuasse crescendo, avançando, se desenvolvendo, fazendo coisas novas, porque a sociedade precisa disso. Precisávamos encontrar uma maneira de continuar evoluindo, crescendo, entregando mais para a sociedade enquanto reinvindicávamos as condições adequadas para o trabalho. A nossa segunda decisão foi de que, obviamente, para fazermos isso, teríamos que hierarquizar os nossos investimentos, as nossas despesas. Tirando aquilo que era essencial, priorizamos as despesas que tivessem relação direta com resultados acadêmicos e científicos e com programas de inclusão e permanência. Isso tudo estava associado ao nosso projeto de universidade, que é baseado nesses dois pilares: nós queremos uma universidade que entregue educação e ciência com qualidade cada vez mais avançada, porque com isso empoderamos a sociedade para vencer seus desafios; e queremos uma universidade que, cada vez mais, faça diferença para as pessoas que mais precisam dela, que são os grupos sociais historicamente excluídos da educação superior que agora estão chegando à universidade.

Então, nós definimos essas duas prioridades e acumulamos sucessos nesses dois campos. Mas isso exigiu muito da gestão porque, além dessas prioridades, nós precisávamos gerenciar tudo mais, não só em termos dos contratos usuais energia, vigilância, limpeza, mas também necessidades que iam surgindo, por exemplo, de manutenção predial. Então não tínhamos os recursos para construir prédios novos, para reformar, mas nós não podíamos também deixar de fazer a manutenção mínima para que as coisas continuassem existindo de um modo satisfatório. Nós tomamos essas decisões e temos muitos resultados positivos acumulados. Há um reconhecimento da comunidade em relação a isso. Mas, a cada dia tivemos, que inventar soluções novas para conseguir fazer essa gestão e fomos acumulando também passivos, como toda a comunidade.

 

Então as sociedades científicas foram reduzindo os eventos, os congressos, as unidades foram reduzindo a participação dos seus membros nos eventos, alguns projetos de pesquisa que dependiam do financiamento da ciência e tecnologia foram sendo atrasados, adiados, alguns cancelados.

 

Hoje nós vivemos uma situação em que temos uma necessidade urgente de recomposição do orçamento porque não temos mais de onde inventar soluções para cobrir essas despesas e temos uma demanda reprimida, um passivo de investimentos que precisam ser feitos e que não estão sendo cobertos. Essa é a realidade de todas as universidades federais, e nós estamos muito preocupados porque não temos como suportar mais um ano nessa condição em que estivemos nos últimos oito anos. Por coincidência, para a nossa equipe foram os oito anos da nossa gestão. Nós tivemos oito anos de cortes, ataques e restrições muito severas. Em 2024 temos um orçamento de manutenção da universidade que equivale aproximadamente a 70% do que nós tínhamos em 2015. Isso considerando os valores nominais mais a inflação, e temos que considerar a inflação porque estamos falando do orçamento que paga os contratos que são reajustados todo ano pela inflação. Então é óbvio que, se eu tenho 30% menos recursos para fazer manutenção, eu estou comprometendo muita coisa que nós poderíamos estar fazendo. Nós crescemos, nos desenvolvemos, entregamos mais para a sociedade, mas poderíamos estar entregando muito mais.

 

Tivemos uma equipe de gestão na área de planejamento, administração e financeiro que foi muito competente para dar essa base para que a universidade conseguisse sustentar os projetos acadêmicos e de assistência estudantil. Mas nós não temos mais de onde tirar soluções.

 

Na parte de infraestrutura, como já disse anteriormente, a universidade continuou crescendo. Criamos 11 cursos de graduação, além de 41 cursos de mestrado e doutorado. Nós criamos mais do que duas ou três universidades federais aqui da Amazônia. Isso em oito anos. E nós obviamente precisamos de uma estrutura nova e maior para que esses grupos que fizeram enorme esforço para se estruturar, para produzir conhecimento, possam usar todo o seu potencial.

 

No entanto, o nosso recurso de capital, que é o recurso que nos permite construir novas instalações, corresponde hoje a aproximadamente 9% do que era em 2015. Não é 90, é 9%. Nós perdemos 91% do que era o orçamento de investimento da universidade. E obviamente isso cria uma pressão enorme, nós estamos esperando que finalmente o governo recomponha o orçamento e nos permita ter recursos para garantir a estrutura necessária ao funcionamento pleno da universidade.

 

ASCOM ADUFPA

 

O Projeto de Lei Orçamentária (PLOA) 2024 para as universidades federais já continha um orçamento menor, em valores nominais, do que o montante conquistado em 2023 com a chamada PEC da transição. Mesmo após diversas reuniões da Diretoria da Andifes com lideranças do Governo Federal e do Congresso Nacional, a redução se acentuou ainda mais na Lei Orçamentária aprovada, resultando no montante de R$ 5.957.807.724,00 para as universidades federais, ou seja, valor R$ 310.379.156,00 menor do que o orçamento de 2023. Qual o reflexo desta redução do orçamento geral, em se tratando do orçamento específico da UFPA? Ajustes precisarão ser feitos? Quais?

 

Emmanuel Tourinho

 

Quando nós falamos desses valores é importante dizer que são valores para manutenção da universidade e considerando a inflação acumulada. Houve uma pequena recomposição dos valores da assistência estudantil, mas muito insuficiente. Em algumas outras rubricas também não houve diminuição, mas no geral, temos um valor menor do que a lei orçamentária de 2023. Tudo ainda é completamente insuficiente e é importante lembrar que o orçamento de 2003 era um orçamento elaborado pelo governo anterior, que mantinha um padrão de subfinanciamento da universidade. Ainda não conseguimos fazer a recomposição. Tivemos algumas concessões pontuais que ajudaram a resolver alguns problemas, mas não tivemos uma mudança de cenário e vivemos uma pressão crescente por recursos para atender demandas que são muito variadas.

As universidades públicas não têm como ser bem sucedidas se não tiverem recursos para assistência estudantil. A condição econômica e social dos nossos alunos é dramática. Na Universidade Federal do Pará, 85% dos alunos vêm de famílias em uma faixa de vulnerabilidade socioeconômica. Como vamos lidar com isso? Precisamos que o aluno fique na universidade, ou vamos perder todo o avanço que tivemos, o investimento que fizemos e a possibilidade de transformar as suas vidas por meio da educação. Em 2016, quando entramos já com uma situação crítica, o RU serviu 800 mil refeições durante o ano inteiro. Agora estamos servindo mais de um milhão de refeições por ano. Por quê? Os nossos alunos estão mais pobres, as famílias estão mais pobres, a possibilidade de eles terem uma rede de apoio fora da universidade é menor. Então, eles demandam mais o apoio à alimentação. E nós não conseguimos atender, nós conseguimos ter restaurantes universitários no campus de Belém, mas não conseguimos construir restaurantes nos campi do interior, que precisam tanto quanto o campus de Belém. Seja porque não temos o recurso de investimento para construir e comprar os equipamentos e contratar as pessoas que são necessárias, seja porque não temos recurso de manutenção que permita comprar os alimentos para manter esses restaurantes funcionando. Então, é algo que precisa ser ponderado. Hoje nós temos um bom diálogo com o governo, mas precisamos que o Governo e o Congresso entreguem um orçamento compatível com as necessidades das universidades. O Congresso, inclusive, reduziu o valor que estava na proposta de lei orçamentária do governo, que já estava muito abaixo do que as universidades necessitam.

 

ASCOM ADUFPA

É uma decepção a aprovação deste corte na PLOA 2024? Porque o Governo Federal e o Congresso Nacional decidiram por esse corte? Porque optaram pela contra-mão da reivindicação urgente de recomposição dos orçamentos?

 

Emmanuel Tourinho

Para que compreendamos exatamente o que está acontecendo, precisamos reconhecer uma diferença substancial entre o governo anterior e o governo atual. Há um diálogo, em vez de uma desqualificação das universidades. Há um reconhecimento por parte do governo sobre a importância das universidades. A Andifes reúne com o MEC sempre que solicita e apresenta as suas posições. É um diálogo franco e respeitoso. Segundo, não podemos dizer que a situação das universidades é a mesma do governo anterior, porque muita coisa melhorou. Então, quando eu digo que o padrão de financiamento continua insuficiente, isto não quer dizer que eu não veja que houve avanços importantes. Vou lhe dar um exemplo. A universidade não vive só do orçamento da sua manutenção. Uma boa parte do que nós fazemos aqui é pesquisa e depende de recursos que vêm das agências de fomento. Existe um fundo, que é o Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, que, por lei, deveria ser destinando à ciência. São mais de 5 bilhões de reais por ano e o governo anterior não liberava esse recurso. Este governo assumiu e liberou integralmente o recurso do FNDCT. Então, está havendo uma injeção de recursos na ciência que, obviamente, vai fazer diferença para as universidades. Só que esse é um recurso que chega nos laboratórios, para os pesquisadores, para os grupos de pesquisa. Ele não é um recurso que vem para a manutenção da universidade.

 

É preciso reconhecer que é uma mudança positiva, que melhora o cenário de trabalho da universidade. O governo também reajustou as bolsas de iniciação científica, mestrado e doutorado. Criou programas novos para inclusão na pós-graduação. Tem muita coisa positiva sendo feita. Mas o que nós estamos dizendo é que isto não será suficiente se não houver uma programação da recomposição do orçamento para a manutenção das universidades. Então, temos apresentado isso. Agora, é difícil acomodar políticas públicas no orçamento com tanto recurso para emenda parlamentar. Se você tira do orçamento 50 bilhões de reais para emendas, você não tem recurso para as políticas públicas necessárias. Isso é algo que a sociedade brasileira deve debater. É óbvio que os parlamentares estão lá por delegação do povo. É óbvio que eles têm direito de opinar sobre os destinos do país, inclusive sobre os investimentos. Mas há que se buscar um equilíbrio nessa equação. Se você tirasse 2 bilhões e meio desses 50 bilhões, você resolveria o problema de manutenção de 69 universidades federais que atendem quase 1 milhão e meio de alunos. E, no entanto, essas 69 instituições que têm campi em quase 400 municípios estão todas com dificuldade para pagar energia, para pagar vigilância, para pagar limpeza. Então, é uma equação política complexa que nós compreendemos, mas nós estamos chamando a atenção para o fato de que as universidades estão no limite.

 

ASCOM ADUFPA

Em sua avaliação o que será mais afetado no funcionamento das instituições? E localmente na UFPA, como ficam o pagamento de bolsas, benefícios estudantis, manutenção, infraestrutura (como obras, equipamentos, laboratórios etc)?

 

Emmanuel Tourinho

 

A nossa posição é a mesma de 8 anos atrás, quando nós começamos a gestão. Nós temos uma situação desafiadora, que nós vamos enfrentar e eleger prioridades. Então, bolsas e auxílios estudantis, são as últimas coisas que serão afetadas. Todo mês, quando recebemos o recurso, a primeira coisa que fazemos é reservar o valor para pagamento das bolsas e auxílios estudantis, para o RU e para os programas acadêmicos. Então, isso tudo vai ser prioridade. Depois nós vamos para a Energia e para os contratos que envolvem trabalhadores e trabalhadoras que não podem ficar sem os seus salários também nas terceirizadas. Nós gostamos de chamar atenção para o fato de que não se trata de indagar se a universidade vai continuar funcionando ou vai parar. Nós vamos fazer sempre de tudo para ela nunca parar, porque o pior que pode haver para a sociedade é a universidade parar. O pior que pode haver para os nossos estudantes é nós dizer que fiquem em casa. Então, nós não faremos isso. Agora, a sociedade precisa compreender que nós estamos entregando menos do que nós poderíamos entregar. Nós poderíamos estar fazendo muito mais, executando mais projetos de extensão e de pesquisa. Poderíamos estar fazendo mais atividades de ensino diversas, enriquecedoras, que nós deixamos de fazer. Por exemplo, nós poderíamos ter mais aulas de campo do que temos, se tivéssemos recursos. Nós poderíamos ter laboratórios com mais equipamentos, mais insumos para mais experiências de aprendizado. Então, não é só uma questão de se a universidade funciona ou não funciona. Nós vamos trabalhar sempre para que ela não pare nunca. Mas, isto não quer dizer que nós estamos entregando para a sociedade tudo aquilo que nós temos capacidade de entregar. Algumas coisas que nós poderíamos estar fazendo deixarão de ser feitas por falta desses recursos. E alguns problemas cotidianos vão acontecer. Aqui e ali teremos dificuldade com a iluminação, ou com a segurança, ou com a limpeza. A biblioteca não vai fechar, mas compraremos menos livros. Então, isso tudo vai sendo afetado. Não é o pedaço A ou o pedaço B que sofrerá os impactos. O sistema como um todo é afetado. Temos uma responsabilidade com cada aluno que cruza o portão e que vem aqui com enormes expectativas e necessidades. Continuar funcionando, entretanto, não significa que não são necessários mais recursos. Quando executamos projetos de extensão, por exemplo, com frequência estamos atendendo uma comunidade que está fora da universidade e que tem uma oportunidade rara de usufruir da universidade, da nossa competência técnico-científica, da nossa capacidade de trabalho, mas realizamos programas de extensão na medida em que o orçamento permite, então há programas que talvez pudessem estar sendo realizados e que deixamos de executar por conta da limitação orçamentária.

 

ASCOM ADUFPA 

É possível mensurar as perdas e impactos tendo em 2024 15% menos recurso que em 2015, sendo que a inflação chegou a crescer 60% de lá pra cá? Em valores nominais (sem considerar a inflação), os R$ 216.919.312,00, em 2015, caem para R$ 188.056.931,00, para o ano de 2024?

 

Emmanuel Tourinho

 

Se o orçamento de 2015 fosse corrigido para valores de hoje, a UFPA teria 255 milhões de custeio, mas só conta com 179 milhões; esses 179 milhões, em tese, são suficientes para manter a instituição até meados do segundo semestre, quando então seria inevitável parar de funcionar. Na prática, porém, não é isso que acontecerá. Faremos o possível para manter o sistema funcionando até o final do ano. O que acontece é que esse sistema como um todo começará a operar aquém da sua capacidade. Há coisas que poderíamos estar fazendo e deixamos de fazer. É claro que como temos uma política institucional voltada a um desenvolvimento permanente e positivo e temos uma comunidade que se mobiliza para isso, vamos continuar tendo resultados positivos. A produção científica da UFPA, por exemplo, neste período de 2016 para cá, aumentou mais de 50%. Isso graças a esse empenho dos grupos e a políticas da gestão que deram suporte para isso. Se não tivéssemos um programa que apoia as publicações científicas, a produção não teria sido essa, mas priorizamos essa política, separamos o recurso para viabilizá-la. Agora, isso não quer dizer que o recurso é suficiente. Porque estamos, primeiro, fazendo menos do que poderíamos nessas áreas onde estamos fazendo alguma coisa e, segundo, estamos deixando de fazer outras porque não temos os meios para fazê-las. E a sociedade pode sentir isso, porque muitos setores da nossa sociedade interagem diretamente com a universidade. Não tem um lugar que você vá que você não encontre alguma realização social que tenha relação com a UFPA. Onde você vai, em qualquer comunidade, tem algum proveito do trabalho da Universidade Federal do Pará. E é muito interessante porque, na capital, isso está presente ao lado de muitas outras coisas, mesmo assim é percebido. Agora, quando você vai para o interior, onde as políticas públicas são mais escassas, a comunidade visualiza como realizações que transformam a sociedade, a universidade é percebida assim, de modo cristalino, como ela faz a diferença para a vida das pessoas, das comunidades, da economia.

 

Nós precisamos que as pessoas compreendam isso e fica fácil elas compreenderem se elas olharem para como isso acontece em outros países. Nos países que têm uma história mais longa de presença das universidades, essa presença já é muito mais visibilizada, valorizada. Há países onde ninguém consegue pensar na possibilidade de não ter universidades públicas, porque dependem delas. Eles têm uma consciência tão avançada do quanto o desenvolvimento social e econômico depende da universidade, que não cogitam comprometer o seu funcionamento. No Brasil, as universidades são recentes. A rigor, nós não temos universidades centenárias. No Peru, há uma universidade de 500 anos, na Argentina há várias com 300 anos, no Brasil não há uma que seja centenária. As poucas que dizem ter sido criadas há mais de 100 anos não eram universidades 100 anos atrás. As nossas instituições com feições de universidades são todas muito jovens. Uma boa parte das nossas lideranças políticas, econômicas, sociais não frequentou uma universidade. Não tem a vivência, o conhecimento. Temos uma elite que já não prioriza a Educação como um todo e menos ainda conhece e valoriza a Universidade. Então, é muito difícil compreender mais ampla e corretamente o papel das universidades e o prejuízo para a sociedade quando você corta o seu financiamento.

 

ASCOM ADUFPA 

Em entrevista para o grupo O Liberal você afirmou que estava em curso uma negociação com o Governo Federal e com o Congresso Nacional, buscando uma solução para viabilizar o funcionamento regular das Universidades, houve algum avanço? Alguma perspectiva de recomposição orçamentária?

 

Emmanuel Tourinho

Sim, a Andifes, que representa as reitorias das universidades federais, têm mantido reuniões periódicas com a Secretaria de Educação Superior do governo. Esse diálogo está existindo. Nós não temos respostas ainda, mas continuam esses esforços para encontrar uma solução. Nós temos a expectativa de que isso realmente aconteça. Temos um governo que, desde a campanha, disse que entendia o valor da universidade, a importância da universidade. Um governo que já equacionou algumas questões do financiamento da ciência. Então, tem tudo para avançar e construir uma solução. Sabemos que os recursos são finitos, que as necessidades do país são enormes, que não teremos tudo que gostaríamos, mas é perfeitamente possível construir, ao longo deste ano, uma solução que garanta um funcionamento regular sem esses atropelos.

 

ASCOM ADUFPA 

Segundo dados veiculados na imprensa, as perdas orçamentárias da UFPA neste ano chegam a 48%, o equivalente a R$ 172.943.069,00. Comente a informação.

 

Emmanuel Tourinho

 

Esse dado é um dado do conjunto das universidades. O Congresso votou o orçamento na última hora, fez muitas alterações na Proposta de Lei Orçamentária do governo, inclusive reduzindo em 194 milhões o valor para despesas discricionárias das universidades. Considerando que a proposta já estava abaixo do total que recebemos em 2023, pela lei aprovada e sancionada, teremos quase 430 milhões a menos para a manutenção das universidades. Essa redução corresponde a 7% dos recursos para manutenção. Se considerarmos a inflação de 4,42% em 2023, a perda chega 12%. Teremos, assim, um orçamento muito menor do que ele deveria ser, se compararmos com o valor de 2015.

 

Para a UFPA, se o orçamento de custeio de 2015 fosse corrigido pela inflação, ele alcançaria hoje 255 milhões, 70 milhões a mais do que temos previsto para 2024. E já seria pouco se considerarmos que a UFPA criou 41 novos cursos de pós-graduação e 11 novos cursos de graduação. Então, estamos mantendo tudo que tínhamos em 2015 e mais 52 cursos novos. Ou seja, é como se estivéssemos mantendo duas universidades com um valor menor do que havia para a manutenção da UFPA oito anos atrás.

 

ASCOM ADUFPA 

Na sua opinião, qual é a saída para romper com essa política de contingenciamento e avançar para um financiamento público que reflita o verdadeiro potencial da ciência e da academia no ensino, pesquisa, extensão, desenvolvimento humano, tecnológico e prestação de serviço à sociedade, no sentido de garantir qualidade e valorização da Educação Pública brasileira?

 

Emmanuel Tourinho

Todos os países que deram um salto no seu desenvolvimento social, que garantiram cidadania, qualidade de vida, dignidade para todas as pessoas fizeram um investimento muito forte em educação. Não tem um que tenha sido bem sucedido sem investimento forte em educação. Nós, porém, ainda buscamos um consenso na sociedade brasileira sobre essa importância da educação e sobre a destinação de um percentual do orçamento federal ao investimento em educação. Cada governo que entra pode destinar dentro da lei orçamentária um percentual diferente. Desse jeito, não há política que transforme a realidade educacional e social, portanto, do país, de modo consistente. Precisamos construir um consenso na sociedade brasileira sobre isso, fixar um percentual dos recursos públicos que devem ser investidos em educação para fazer essa transformação e ter políticas continuadas, que tenham consistência. Não adianta hoje haver recurso e amanhã sofrer cortes. Os especialistas em educação têm um debate acumulado sobre o que precisa ser feito, sobre como precisa acontecer a valorização do professor, sobre como precisa acontecer o investimento em tecnologia na área educacional, sobre como precisa ser repensado o currículo em cada etapa da educação. Mas nem sempre isso que um segmento importante da sociedade passa anos discutindo evolui para um consenso do conjunto da sociedade e tem repercussão nas políticas públicas.

Enquanto o Brasil não fizer isso, viveremos de soluços, eventualmente um ganho aqui, um avanço ali, mas não uma transformação substancial. O Brasil precisa pensar grande. Precisamos construir um pacto sobre onde queremos estar daqui a 10 anos. Estamos discutindo agora um novo Plano Nacional de Educação (PNE). O PNE anterior tinha muitas metas interessantes, mas que não foram cumpridas. Foi uma lei aprovada por unanimidade no Congresso Nacional, todos os partidos, todos os atores concordavam, mas uma lei que não determinava uma obrigação orçamentária correspondente dos entes envolvidos na execução daquelas metas. Então, 10 anos depois, estamos mais ou menos onde estávamos 10 anos atrás. Avançamos em algumas áreas pontuais, mas não operamos uma transformação da realidade educacional brasileira. Em breve, teremos a Conferência Nacional de Educação (CNE) e vamos construir um novo PNE, mas não pode ser de novo uma peça retórica. Somos capazes de fazer peças retóricas maravilhosas, mas não se vive disso.

 

ASCOM ADUFPA 

Você gostaria de destacar algum aspecto específico quanto a manutenção dos cortes pelo governo Lula (PT) e sobre como isso impacta negativamente as expectativas dos movimentos quanto à gestão do presidente?

 

Emmanuel Tourinho

Nós temos um executivo eleito com compromissos sociais e educacionais que estão alinhados com o que nós esperamos para a educação. Mas nós temos um Congresso Nacional majoritariamente constituído por parlamentares eleitos com base em compromissos diferentes, às vezes opostos. E vivemos no país uma realidade política complexa, de tensão entre essas forças, que muitas vezes dificulta fazer certos projetos ou certas propostas existirem de fato. Reconheço que para o governo é uma realidade complexa. É o terceiro governo do presidente Lula, mas não pode ser comparado esse cenário com o cenário que ele enfrentou nos governos anteriores. A governabilidade está arranjada de um jeito diferente e ainda vivemos sob ameaças de rupturas democráticas. É algo gravíssimo, então é um ambiente muito complexo. Acredito que a sociedade não pode esperar que isso se resolva em Brasília. A sociedade tem que participar mais, tem que ser uma força mais atuante nesse processo, o que é um desafio ainda maior considerando a grande dificuldade de mobilização dos sindicatos e alguns movimentos sociais. Nós precisamos encontrar maneiras, que talvez não sejam as maneiras como nós nos organizávamos antes; mas tem que existir maneiras de a sociedade ter uma participação mais ativa no processo decisório das políticas públicas. Nós não podemos ficar esperando o Congresso instituir uma democracia mais participativa. O Congresso, desse ponto de vista, poderá ser reativo. Se a sociedade se organizar, cobrar, pressionar, ele pode acolher as vozes da sociedade. Como nós vamos fazer isso é um grande desafio.

 

ASCOM ADUFPA 

Quais foram os limites impostos e os avanços possíveis frente aos cortes anuais sofridos pela UFPA na sua gestão?

 

Emmanuel Tourinho

Nos últimos oito anos a gestão da universidade sempre atuou politicamente no espaço institucional e fora, participando da luta em defesa da educação. Nós nunca aceitamos a posição de ficar só assistindo. Buscamos diálogo sempre com todos os atores institucionais. É claro que em uma universidade grande e complexa como a nossa, e em muitas outras, você tem visões que aqui e ali são divergentes. Elas nunca serão 100% coincidentes, mas todas as forças que têm em comum a defesa da universidade pública podem, sim, atuar conjuntamente, deixando temporariamente de lado as diferenças menores e concentrando esforços para fazer essa afirmação da importância da universidade. Isto vem acontecendo, eu acho, e vou dar aqui um exemplo. Quando houve a nossa reeleição, o governo não queria nomear a nossa equipe, que venceu o pleito eleitoral. A comunidade inteira se mobilizou para isso. A comunidade inteira compreendeu que era fundamental defender a autonomia da universidade, defender que a universidade tivesse na liderança alguém com reconhecimento da comunidade para estar nessa posição, e fomos capazes de, lutando juntos, garantir isso.

 

E já fizemos outras coisas. Eu lembro quando houve os primeiros cortes também no governo passado. Nós fomos juntos para a rua. Foi a primeira derrota imposta àquele governo. Não sei se você vai lembrar disso. Em maio de 2018, eles estavam mudando tudo no país, ninguém conseguia reagir, até que veio o Ministro da Educação e disse que ia cortar 30% dos recursos das universidades. Essa mobilização de 2018 funcionou. Foi o chamado Tsunami da Educação. Quando se juntaram as categorias dentro da universidade e a gestão da universidade; nós estávamos lá juntos. A Andifes teve uma atuação muito forte e nós conseguimos impor uma derrota naquele momento. O governo voltou atrás e suspendeu o corte de 30% que havia sido anunciado nos recursos de custeio da universidade. Então devemos, sim, fazer isso. Para todas as pessoas que estão aqui na universidade, imagino, há um compromisso comum, que é a defesa da universidade pública, a defesa de uma universidade que seja inclusiva, que faça diferença para o conjunto da sociedade, que seja uma universidade de qualidade, mas precisa ser gratuita, senão será elitista, não vai cumprir essa função. Então, há consensos em torno disso. E nós podemos sempre trabalhar juntando esforços para fazer a defesa dessa pauta. Não só frente ao governo, mas também contribuindo para que uma informação de qualidade chegue ao conjunto da sociedade. Porque como uma parcela pequena da sociedade passou pela universidade, nem todo mundo entende, nem todo mundo sabe por que a universidade pública é importante, por que ela deve existir. Então nós precisamos dialogar com o conjunto da sociedade para afirmar a relevância e a diferença que faz ter universidades públicas de qualidade.

 

ASCOM ADUFPA

Para encerrar, eu queria deixar livre o espaço para considerações finais.

 

Emmanuel Tourinho

Estamos felizes de ver que conseguimos resistir a pressões contra a universidade pública e conseguimos, neste período, não apenas defender a universidade que tínhamos, mas desenvolver a universidade. Nós temos hoje uma universidade que é muito mais potente, que faz muito mais diferença para a sociedade, que dialoga com todos os setores da sociedade, que é capaz de responder às necessidades da sociedade com muito mais eficiência, prontidão, que acolhe mais discentes de todos os lugares, de todas as origens. Temos uma universidade muito mais diversa, que é muito mais a cara da nossa sociedade. E temos uma universidade que, buscando essa maior qualidade acadêmico-científica e buscando uma atuação mais intensa na inclusão, passou a ter uma visibilidade, um reconhecimento maior fora dos nossos muros, não apenas aqui, mas nacionalmente, internacionalmente.

 

A Universidade Federal do Pará, hoje, é vista como uma das maiores e mais importantes do Brasil. A Universidade Federal do Pará é tomada como referência por outras universidades em muitas coisas que ela realiza. Passamos a figurar em todos os rankings internacionais, somos procurados por pessoas e instituições de todos os lugares do mundo, interessadas em conhecer e desenvolver trabalhos em parceria. A universidade tem números para mostrar esses saltos todos. Eu falei do crescimento da produção científica, poderia falar de uma dezena ou dezenas de outros números que mostram esses avanços. Mas o principal é que você percebe que as pessoas compreendem esse crescimento. Pessoas de dentro e de fora da universidade, daqui e de fora do Pará. Esse fortalecimento que houve da nossa instituição também foi possível porque houve um amadurecimento dos atores políticos dentro da universidade. Nós temos uma universidade plural de ideias, de visões de mundo. Uma universidade onde as pessoas conseguem dialogar, conseguem debater, conseguem, com respeito uns aos outros, construir o que é o projeto coletivo. Se nós tivéssemos uma universidade cindida como outras estavam, nós não teríamos conseguido fazer valer a autonomia universitária quando houve a nossa eleição. Como outras não conseguiram. Isso também é um salto a destacar, é um salto importante. Nós aqui dialogamos com todo mundo no pressuposto de que não pensamos exatamente a mesma coisa. Nós sabemos que cada setor da sociedade aqui e ali tem uma visão diferente, mas isto não torna cada um incapaz de dialogar, nem torna a instituição incapaz de construir políticas que funcionam a seu favor e em favor da sociedade, em benefício da sociedade. Isso é algo muito valioso e a Universidade Federal do Pará hoje é muito enraizada na realidade social do estado. Não tem movimento social no estado do Pará que não veja a universidade como uma parceira, como uma interlocutora importante. E isso sem prejuízo do diálogo que a universidade sempre teve com outros setores, com governos, com o setor empresarial; todos esses diálogos continuaram existindo.

 

Nós tivemos muitos avanços na inclusão social. Nós desenvolvemos muitas ações para aperfeiçoar a entrada na universidade. A universidade já tinha processo seletivo especial, mas adotamos regras para o processo seletivo que quase duplicaram o número de ingressantes. Passamos a ter 40% mais alunos quilombolas e 80% mais alunos indígenas na universidade com as mudanças que fizemos. Nós criamos outros processos seletivos especiais, mas além desse esforço para melhorar a inclusão, nós desenvolvemos muitas ações novas para garantir a permanência, que é essencial. Como exemplo, temos o RU. No momento em que o orçamento está no menor valor, com o custo dos alimentos disparando, conseguirmos oferecer mais 200 mil refeições por ano. Concluímos a Casa dos Estudantes no campus de Belém. Construímos uma Casa dos Estudantes nova em Cametá. Reformamos a Casa dos Estudantes em Altamira, em Breves. Aumentamos o número de auxílios. Nós temos o recurso do Programa Nacional de Assistência Estudantil, o PNAES. A partir de um dado momento, o recurso do PNAES não era suficiente para sustentar o que a gente estava fazendo. O que muitas universidades fizeram? Elas cortaram auxílios ou diminuíram o valor dos auxílios. O que nós fizemos? Nós suplementamos o orçamento da Assistência Estudantil com outros recursos. Então, o ponto mais alto foi o ano passado. 2023 foi um ano muito difícil. Principalmente por conta da questão dos RUs. Os alimentos subiram muito e o consumo aumentou muito. E não foi só o número de refeições servidas, mas, também, a quantidade de alimentos consumidos. No ano passado, 32% dos investimentos em Assistência Estudantil precisaram vir de outras rubricas. E por que nós fizemos isso? Porque tínhamos um compromisso. Isso era politicamente central para nós. Então, nos recusamos a encolher. Somos talvez a única universidade que, quando houve reajuste das Bolsas de Extensão e de Iniciação Científica, elevou o valor dos auxílios da Assistência Estudantil de R$ 400 para R$ 700. E o governo não deu o recurso para esse reajuste. E qual é o resultado? Somos uma das universidades que tem a menor taxa de evasão, a maior taxa de sucesso.

 

Então, a permanência não veio do nada. A assistência estudantil não é um investimento que não aparece nos números. Aparece nos números também, nos resultados da universidade. Nós não podemos nem ser comparados com as universidades do Sudeste, porque as universidades do Sudeste não têm a taxa de estudantes em vulnerabilidade que nós temos. Elas têm um percentual muito mais baixo. E, no entanto, nós temos uma taxa de sucesso maior do que algumas delas. Isso é muito significativo.

 

A referência oficial para a definição da vulnerabilidade socioeconômica é um salário mínimo e meio per capita na família. Na UFPA, 49% dos alunos que recebem auxílios vêm de famílias com uma renda per capita de até um quarto de salário mínimo. Este é o limite da extrema pobreza. Na UFPA, 15% dos alunos têm a condição de extrema pobreza. O que dá, só na graduação, 6 mil alunos.

 

Alguns dos alunos que recebem o auxílio representam a maior renda dentro das suas famílias. É uma responsabilidade muito grande.

 

Eu queria só concluir dizendo que nós fazemos um balanço muito positivo. Estamos muito felizes de a universidade ter sido não apenas um espaço de resistência, mas um espaço de realizações que fazem avançar uma conquista que é da sociedade. Apesar das dificuldades, precisamos acreditar que é possível vencer o problema orçamentário deste ano, que temos a capacidade de fazer os enfrentamentos que são necessários para defender a universidade pública e que essa transformação que nós queremos da sociedade tem que ser construída por nós.

 

O Brasil não é o país dos sonhos de ninguém, mas ele só vai mudar se assumirmos a responsabilidade pela mudança. Não adianta esperar que o Congresso ou o poder executivo resolvam todos os problemas. Tem que ser a sociedade mobilizada e empenhada para fazer as coisas acontecerem. Nós sempre trabalhamos na universidade com essa visão. A universidade precisa ser uma instituição que mobiliza energias de uma comunidade que tem uma enorme capacidade de interação com toda a sociedade para fazer as coisas acontecerem. E acho que temos feito isso. A universidade tem um papel de liderança, de vanguarda, e capacidade de promover o empoderamento da sociedade no enfrentamento de seus desafios.

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